É de triste ironia constatar o que se passa neste momento em Alcobaça, cidade natal de um dos mais importantes silvicultores europeus do século XX, precisamente numa das ruas que lhe deveria prestar homenagem, a avenida Prof. Eng. Joaquim Vieira Natividade, em que um projecto de reabilitação é mais uma vez a absurda justificação para o abate de árvores adultas e saudáveis.
O texto que aqui partilhamos é da autoria do brilhante Engenheiro Vieira Natividade e infelizmente perante as imagens que partilhamos, e que muito nos entristecem, é hoje tão ou mais oportuno do que foi em 1959.
A ÁRVORE E A CIDADE
Artigo de Joaquim Vieira Natividade
no jornal Diário Popular, Ano XVIII, n.º 6090, Lisboa, 1959
Uma das coisas que desfavoravelmente impressionam quem visita o nosso País é a incapacidade, aparente ou real, para, com inteligência e dignidade, aproveitarmos a árvore no urbanismo. Há quem fale, à boca pequena, de atávicos instintos arboricidas, o que é desprimoroso, antipático, quando não degradante e sinistro, porque pode levar a crer que, apesar de baptizados e de nos termos por bons cristãos, de todo nos não libertámos ainda dos vícios e das tendências ingénitas, da infiel moirama.
Para se contornarem os melindres, recorramos, não já ao neologismo «arborifobia»,porventura também cruel, mas a eufemismo suaves e eruditos, como a dendroclastia, para traduzir o desamor de muitos dos nossos municípios pela árvore ornamental.
Em boa verdade, por esse País fora, em tantas caricaturas de jardins a que se dá por vezes o nome de parques municipais, raro se nos depara uma árvore verdadeira, uma árvore autêntica, em todo o esplendor da majestosa arborescência: a árvore esbelta, digna, umbrosa e acolhedora, orgulho da Criação. Onde acaso existiu, poucas vezes escapou a brutais mutilações que a transformaram em grotesco Quasímodo, sem o mínimo respeito pela dignidade do mundo vegetal.
Nos jardins, em lugar da árvore, plantou- se um reles ersatz, uns arbustozitos burlescos, quase bobos arbóreos, tão inúteis que nem dão sombra a uma pessoa crescida: as tais falsas acácias de importação, maneirinhas, embonecadas, dengosas, com o ar, não de fazerem parte do jardim, mas de terem ali ido, em passeio, exibir a ramagem, com a sua «permanente»manipulada no salão de qualquer coiffeur arborícola municipal.
Compreende-se, num povo de fraca cultura, o desamor instintivo ao marmeleiro e ao castanheiro, árvores estas consideradas, desde remotos tempos, estimáveis ferramentas de educação e esteio dessa vida patriarcal, austera e digna, que os velhos, ao olharem o que vai pelo Mundo, recordam com saudade e respeitoso enlevo. Já se não compreende, todavia, que se mutilem ou suprimam sem piedade o ulmeiro, o plátano, o umbroso freixo, o álamo esbelto, os nobres e austeros ciprestes, os cedros, os carvalhos e tantos outros soberbos gigantes vegetais que, estranhos, embora, muitos deles à nossa flora, encontraram na Lusitânia como que a sua segunda pátria.
Num país castigado por uma ardente canícula, dir-se-ia que temos horror à sombra; onde se pediam arvoredos frondosos e acolhedores, o ninho de um oásis a suavizar as inclemências do estio, fizemos terreiros imensos, cruamente ensoalheirados e inóspitos; quando tantos dos nossos monumentos lucrariam com uma nobre moldura vegetal que acarinhasse e aquecesse essa frieza da pedra ou por vezes quebrasse, com a cortina da folhagem, a monotonia das grandes massas arquitetónicas, e num ou noutro caso escondesse até a sua real pobreza; quando a presença da árvore exaltaria o poder evocador e o poético encanto que emana de tantas ruínas, como acontece aos templos perdidos nos bosques sagrados da Grécia – nós, pela calada, metodicamente, cinicamente, fomos degolando, mutilando, rapando tudo o que tivesse jeito de árvore para não prejudicar as «vistas», tal como faria qualquer ricaço de letras gordas aos empecilhos que ofuscassem ou escondessem os arrebiques pelintras do seu chalet.
O que haveria a dizer sobre as grandezas e as misérias da árvore nas cidades e nas vilas de Portugal!
E lamentável, na verdade, em pleno século XXI, que ainda haja autarcas, arquitectos e engenheiros que não sejam capazes de respeitar o arvoredo existente no espaço urbano e que os desenhos feitos no computador ( lá vai o tempo em que se desenhava em cima de um estirador...) cortem a direito sem primeiro fazerem um levantamento do existente. Serão muitos poucos os casos em que seja absolutamente indispensável derrubar arvoredo vetusto para traçar o desenho urbanístico - a regra mais geral é abater arvoredo ou destruir um espaço verde para ajustar ao projecto do técnico indiferente ao respeito pelas coisas da Natureza.
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